"...no desalinho triste das minhas emoções confusas..."






05/08/2013

"Tudo enquadrado"

Entardecia. Barulho de motor e buzina no trânsito parado, pombas levantando voo para se abrigarem, conversas cansadas. Rostos oleosos esperando nos pontos de ônibus; o odor forte do rapaz a esquerda misturando adentro de minhas narinas com o perfume madeirado da moça a direita. A moça parecia não se importar com seu redor, talvez não o percebera. Mas eu a percebi.
Seus lábios, vermelho mate, eram finos e quase tortos. Sua mão era magra e possuía dedos finos e compridos, que eram casa de um esmalte azul indigo, descascado. O cheiro de fritura e óleo velho me desorientaram da gravura que fazia. Segui o cheiro com os olhos e senti dor de estômago ao avistar o letreiro da lanchonete, a esquina.
Acendi um cigarro, ignorando a situação. A moça não estava mais a vista quando voltei a posição de detalhista observador. Pontou desespero. Sempre fui muito ansioso, afobado. Enquanto a procurava, lembrei de um amigo. Pedro sempre citava a mim em momentos de desespero: "não se afobe não que nada é pra já".
Sempre odiei Chico Buarque.
Voltei ao presente. O cigarro se consumia, enquanto a dor de estômago se agravava. Avistei a sutil figura, de costas. Um alívio percorreu o corpo. Sabia que era ela pelas unhas. Seus cabelos dourados estavam presos com grampos pretos, deixando aparente o leve branqueamento de sua raiz.
O ônibus chegara.
Superlotação. Me segurei em pé em um lugar que desse boa visão da moça e seus olhos. Seus olhos: negros e brilhantes, acompanhando uma pele clara de olheiras acostumadas. Seu nariz era delicado, e embora não alcançasse a beleza padrão, complementava o rosto com charme.
Primeira parada. A moça levantou. Veio em minha direção. Meus desejos mais sujos e delírios mais loucos passaram por meu inconsciente. "A pegaria pelos braços e a possuiria ali mesmo, no chão sujo e pisoteado do ônibus aos pedaços. Ela não se importaria, eu sabia pois ela descobriria sua paixão surda por mim". A multidão impediu-me que fizesse dela a minha mulher, ali e agora, mas permitiu que esbarrasse em meus ombros e sorrisse envergonhadamente com o canto dos lábios. Os dentes, levemente amarelados, foram o suficiente para que percorresse pela minha espinha um relâmpago que chegava aos pés em forma de raio e a cabeça em forma de choque. Não me mexi, não consegui retribuir ao seus dentes tortos. A cara de sádico estampava meu rosto, assustando e confundindo quem quer que passasse ali. A dor de estômago se transformou em calor externo e frio interno.
Terceira parada.
Cheguei em casa, dor confusa. Vomitei borboletas.

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